segunda-feira, 26 de maio de 2008

Qual latifúndio?

Denis Lerrer Rosenfield

No emaranhado do debate político atual sobre as questões fundiárias, fica muitas vezes difícil discernir o que está verdadeiramente em jogo, tal é o afã de alguns em ocultar a realidade. A percepção, de tão afastada desta, pode vir a fabular um mundo em que o País seria um imenso latifúndio, ocupado por proprietários inescrupulosos. Cria-se, assim, um novo mundo particularmente propício à fragilização da propriedade privada, onde os títulos não valem mais e a própria Constituição é rasgada.

Alguns poucos, com projetos políticos próprios, travestidos da bandeira de uma suposta "justiça social", se arvoram em intérpretes da Lei Maior, como se o Poder Judiciário e o Supremo Tribunal Federal não devessem ser respeitados. Assim, a propriedade entra num ciclo perverso de relativização, no qual questões indígenas, sociais e outras ganham a cena principal. Elas são freqüentemente instrumentalizadas por ditos movimentos sociais, verdadeiras organizações políticas que têm como objetivo banir a economia de mercado e o Estado de Direito.

Vejamos os números da distribuição agrária brasileira, referentes a 2007. As culturas temporárias, de ciclo anual - feijão, milho, soja, trigo, arroz e algodão, por exemplo -, ocupam 55 milhões de hectares, perfazendo 6,4% do total. As culturas permanentes, de ciclo mais longo - café, cítricos e frutíferos -, 17 milhões de hectares, 2% do total. As florestas plantadas constituem 5 milhões de hectares, 0,6%. As três, juntas, somam 77 milhões de hectares, ou seja, 9% do total.

Os assentamentos rurais, por sua vez, perfazem sozinhos - repito: sozinhos! - 77 milhões de hectares, ou seja, os mesmos 9% do total. A coincidência parece cabalística, mas é a pura realidade. Atentem para o fato central: os assentamentos equivalem a toda a área de culturas temporárias, permanentes e de florestas, no Brasil. E, no entanto, estas são objeto de invasões constantes, como se o País devesse tornar-se um grande assentamento.

A propriedade privada rural, pequena, média e grande, produz a cesta básica do brasileiro, sendo a fonte de fatia expressiva das exportações brasileiras, gerando o superávit da balança comercial e, sobretudo, empregos, salário, renda e investimentos. Ela se constitui num dos setores mais dinâmicos da economia nacional e, contudo, é objeto de questionamentos constantes, vivendo de insegurança jurídica, como se fosse a responsável por todos os males do campo brasileiro, como se aquilo que comêssemos não fosse objeto do seu trabalho.

Os assentamentos, por sua vez, são de produtividade desconhecida, estudiosos não podem ir lá dentro fazer uma pesquisa isenta, o controle político é total e se encontram numa situação de dependência do governo. Vivem de cestas básicas e não são emancipados - e a emancipação é o que poderia tornar os assentados verdadeiros proprietários, senhores do seu nariz, comprando e vendendo, sem se subordinarem a organizações políticas que os controlam e dizem representá-los. Recursos públicos significativos são canalizados para esses assentamentos e para a reprodução financeira dessas organizações políticas ditas movimentos sociais. Todos vivem do dinheiro do contribuinte!

Vejam a questão das florestas plantadas, fundamentalmente eucaliptos e pinus. Elas correspondem a meros 0,6%, 5 milhões de hectares, e são, todavia, apresentadas como as grandes vilãs do meio ambiente, sendo destruídas, em invasões, com requintes de violência. Os produtos florestais respondem por 15,1% das exportações do agronegócio, ocupando a terceira posição depois do complexo soja e das carnes. A produtividade e o ganho nacional são imensos num setor que se deve defender de invasões que ameaçam a sua existência. Se quiséssemos, ainda, fazer outra comparação, assinalaríamos que as áreas de conservação federal e estaduais ocupam 176 milhões de hectares, isto é, 20,7% do total.

Tornou-se moda dizer que as áreas indígenas são insuficientes, havendo movimentos para ampliá-las constantemente, como se o limite fosse todo o território nacional. Atualmente, elas ocupam 107 milhões de hectares, mais, portanto, do que toda a área de lavouras temporárias, permanentes e de florestas. Sozinhas, elas englobam boa parte do território, equivalente a vários países europeus juntos, para uma pequena população. Dizer que os indígenas não possuem territórios suficientes é um evidente contra-senso, a não ser que o projeto político em questão consista em não considerá-los brasileiros, formando diferentes "nações" que se contraporiam à Nação brasileira. Em todo caso, já teriam uma imensa área. Faltaria somente a demarcação contínua!

Para se ter uma idéia mais precisa do que esta área significa, todas as áreas de pastagem, que respondem pela carne brasileira, principalmente bovina, correspondem a 172 milhões de hectares, 20,2 % do total. De lá provêm as carnes, itens essenciais da alimentação dos brasileiros. Na pauta do agronegócio, as carnes ocupam a segunda posição, com 19,3% do total exportado. Terras do governo e de outros usos, por sua vez, constituem 171 milhões de hectares, isto é, 20,1% do total. Praticamente se equivalem, com a diferença de que ao agronegócio, no caso, a pecuária, seria atribuída a responsabilidade de todos os males da sociedade brasileira!

A despeito do que tem sido dito, a extrema competitividade do agronegócio não se deve ao aumento significativo das terras plantadas e cultivadas, mas a um aumento estupendo da produtividade, graças à pesquisa e à incorporação de novas tecnologias. Por exemplo, a área de grãos cresceu 21%, alcançando 46,7 milhões de hectares, de 1991-1992 a 2007-2008, enquanto a produtividade, no mesmo período, foi de 104%. Eis os números que correspondem à realidade e, se mais bem conhecidos, fariam os cidadãos brasileiros se tornarem mais imunes aos cantos de sereia dos que querem supostamente abolir o latifúndio. Aliás, qual?

Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na UFRGS. E-mail:
denisrosenfield@terra.com.br

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