sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Egoísmo esclarecido

Quase dois séculos atrás, o francês Alexis de Tocqueville, em visita aos EUA, reparou que os americanos tinham algumas características que os diferenciavam de todos os outros povos. Segundo ele, todos os cidadãos seguiam dois valores aparentemente contraditórios. De um lado, cultivavam um individualismo exacerbado e explícito e, de outro, praticavam o comunitarismo em níveis também inéditos.

Como pode uma pessoa ser, ao mesmo tempo, individualista e comunitarista? Na época, anos 30 do século 19, ninguém arriscava uma explicação. O fato é que funcionava. Apesar de manifestamente egoístas, na hora da necessidade coletiva todos contribuíam com o necessário para afastar o problema. Cada um cedia o suficiente e ninguém fazia alarde disso.

Como é possível?

A expressão que engloba tudo isso é "egoísmo esclarecido" e só surgiu há poucos anos. Nos EUA, talvez em função das peculiaridades de sua formação - desde seu passado colonial -, todos os indivíduos aprenderam, desde sempre, a se virar por si próprios e a não contar com o Estado, ou qualquer outra autoridade maior, para ajudá-los nas suas necessidades. Mesmo quando envolvem a comunidade.

Egoísmo esclarecido é o seguinte: todos se assumem explicitamente como individualistas e egoístas e ninguém se envergonha disso; por outro lado, são conscientes e esclarecidos. Quando os problemas são gerais, todos participam e jamais se gabam ou se vangloriam.

Isso é estranho e incompreensível para nós. A cultura latina pauta-se por valores muito diferentes. As pessoas, por aqui, não se assumem como individualistas ou egoístas - ao contrário, são todas altruístas - e, em contrapartida, nada se faz visando exclusivamente a comunidade. Qualquer atitude nesse sentido é sempre muito alardeada e repercutida.

A rigidez da cultura norte-americana vem adquirindo novas nuances. John Rockefeller, já no século 20, foi o primeiro grande empresário a praticar a filantropia. Financiou a educação em todos os aspectos - desde o custo de instalação de salas de aula até pesquisas aplicadas. Sua atitude virou regra: praticamente todos os grandes empresários praticam filantropia. Mas ninguém o faz enquanto sua fortuna ainda está na fase de criação. Não é correto valer-se de uma boa reputação para obter vantagens nos negócios. Também não é costume praticar caridade. Tudo o que se faz é no sentido de ajudar as pessoas a se ajudarem. Essas atitudes são coerentes com o espírito da América. Trata-se de mais uma manifestação da prática do egoísmo esclarecido. Isso não faz sentido dentro da ótica latina. Os valores são outros.

E a fundação de Bill Gates que tem como foco as populações mais pobres do mundo? Trata-se de uma exceção?

Não. A fundação dos Gates se abstém de práticas de cunho paternalista ou assistencialista. Ela investe na criação de novas técnicas - mais em conta e baratas - para proporcionar a todas as nações as condições mínimas para iniciarem o seu processo de desenvolvimento. Seus focos principais são a saúde e a educação.

Nada de esmolas, portanto. Muitos recursos já foram despendidos pelos países ricos com o sentido de ajudar os países pobres. O saldo final é que os povos pobres permanecem na miséria.

Houve pouca honestidade ou transparência por parte das nações desenvolvidas? Ao contrário. O fato é que o dinheiro simplesmente sumiu. E isso ocorreu depois de ter sido transferido para os governos dos povos não-desenvolvidos. Não se dá o peixe, diz o ditado, mas se ensina a pescar.

Voltando aos valores que geram o egoísmo esclarecido, há quem afirme, de fora dos EUA, que os norte-americanos são comportados porque a legislação lá é muito severa. Ora, o Código de Trânsito Brasileiro é duro, o número de policiais é considerado suficiente e nem por isso os motoristas respeitam as regras mais elementares.

Nas autoestradas, por exemplo, nos dias e horários de tráfego intenso, os congestionamentos são agravados porque muitos motoristas optam por "costurar": mudam de faixa constantemente, ultrapassam pela direita e pelo acostamento. No tempo de percurso não levam vantagem alguma. Acabam chegando ao destino junto com aqueles que não adotaram tais práticas. Mas eles ficam satisfeitos. O negócio é levar vantagem em tudo, certo?

As noções éticas de grande parte dos latinos são essas. Furar fila, "costurar" e inúmeras outras atitudes colidem frontalmente com o conceito de egoísmo esclarecido. São evidências, ao contrário, da prática de um egoísmo cego e ignorante. Quando todos querem levar vantagem em tudo, ninguém acaba levando vantagem em nada. É uma conclusão óbvia. Mas, como tudo o que é óbvio, é muito difícil se chegar a ela.

Os latino-americanos, em grande parte, ressentem-se com o sucesso dos norte-americanos. O fato de os EUA - em especial - terem dado certo, enquanto os demais países do continente, com raras exceções, não se desenvolveram, é motivo de ódio. Os EUA desenvolveram-se, entre outras razões, porque seu povo - sua sociedade - vem adotando, desde sempre, os valores que mais facilitam a afluência e o progresso. Não entender isso é tentar, como se diz, encobrir o Sol com a peneira.

Como constataram os autores do livro O Perfeito Idiota Latino-Americano, faz parte da cultura responsabilizar os outros pelos nossos fracassos. Tudo o que aconteceu de errado por aqui foi causado pela "exploração impiedosa" dos EUA ou pelo "sistema colonial ibérico". O livro foi escrito por três homens. Todos originários da América Latina.

É extremamente difícil, para qualquer um, compreender e, sobretudo, assimilar os valores que pautam o egoísmo esclarecido. Mas, ao não fazê-lo, adia-se ainda mais o desenvolvimento. Paciência.

João Mellão Neto, jornalista, deputado estadual, foi deputado federal, secretário e ministro de Estado
E-mail: j.mellao@uol.com.br

ESTADÃO

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segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

O silogismo da impunidade

O roubo de donativos destinados às vítimas das enchentes em Santa Catarina provocou indignação e também uma discussão sobre os reflexos da impunidade no País. O professor de Ética e Filosofia da Unicamp Roberto Romano disse, em comentário publicado no jornal O Globo, que o comportamento de juízes, políticos e empresários que advogam em causa própria incentiva ações como as dos soldados e voluntários que roubaram alimentos e roupas doados àqueles que perderam tudo o que tinham nas enchentes.

"A gente fica horrorizado. Quando se vê um político dividindo sacos de dinheiro, de forma tranquila, começa-se a achar natural um voluntário separar daquele conjunto o que é melhor para ele. É necessário dar um basta a isso. Quando vamos romper esse ciclo? Quando se banaliza a corrupção se banaliza a culpa. O risco é de que se torne um comportamento epidêmico. Para onde vamos?", pergunta o historiador Marco Antônio Villa. A presidente da Pastoral da Criança, Zilda Arns, disse ter ficado envergonhada com o que aconteceu em Santa Catarina. Para ela, quem rouba donativo não tem firmeza de caráter.

Uma das causas dos crimes e dos desvios de comportamento que castigam a sociedade brasileira é, sem dúvida, a certeza da impunidade. O criminoso sabe que a probabilidade de um longo período de reclusão só existe na letra morta da lei. O Brasil, como bem sabemos, não padece de anemia legal. O nosso drama é a falta de eficácia na aplicação da lei. A Itália, nação também latina e emocional, soube combater suas máfias com notável sucesso. E não falemos nos países anglo-saxões. Lá fora também existe corrupção, só que as autoridades colocam os ladrões na cadeia.

O que a sociedade assiste, em todos os níveis, a começar pelos patamares mais altos, é ao jogo do faz-de-conta e ao triunfo da mais obscena impunidade. O teatro das CPIs, a reeleição de inúmeros corruptos, a novela inacabada dos escândalos que se sucedem e tantas outras bofetadas na cidadania compõem o ambiente perfeito para a institucionalização do crime. A fibra moral da sociedade vai-se desfazendo numa velocidade assustadora. Mas há, estou convencido, causas ideológicas mais profundas para o eclipse da ética e para a explosão das ações criminosas. O relativismo ético, a ausência de limites e a crise da família estão na raiz da patologia social.

De fato, quantas correntes ideológicas, quantos modismos intelectuais vivemos nas últimas décadas? A busca da verdade é frequentemente etiquetada como fundamentalismo, ao passo que o relativismo, isto é, o deixar-se levar ao sabor da última novidade, aparece como a única atitude à altura dos tempos que correm. Vai-se constituindo a intolerância do relativismo que não reconhece nada como definitivo e que usa como critério apenas o próprio eu. Porém, como lembra o papa Bento XVI, do alto de sua inequívoca autoridade intelectual, "a renúncia à verdade não soluciona nada, mas ao contrário: conduz à ditadura da arbitrariedade". O relativismo está, de fato, na origem do enfraquecimento da democracia e nas agressões cada vez mais brutais aos direitos humanos.

Há no cerne da crise uma profunda raiz ideológica. Na verdade, as bases racionais da modernidade foram minadas pelo relativismo. Rompeu-se, dramaticamente, o nexo de união entre vontade e razão. Dessa forma, as pessoas passaram, no seu comportamento prático, a confundir gosto com vontade, sem conseguir captar as profundas diferenças existentes entre ambos. Por isso, cada vez mais o gosto, o capricho, o prazer (incluindo as suas manifestações mórbidas e doentias) passaram a impor sua força cega. Um dos traços comportamentais que marcam a decomposição ética da sociedade é, efetivamente, o desaparecimento da noção da existência de relação entre causa e efeito. A responsabilidade, consequência direta e lógica dos atos humanos, simplesmente desapareceu. O fim justifica os meios. Sempre. Trata-se da consequência lógica do raciocínio construído de costas para a verdade e para a ética. O político não tem limites na busca do poder. O burocrata avança no dinheiro público. E o voluntário saqueia os mantimentos e furta os donativos destinados a minorar o drama de nossos compatriotas. É terrível, mas é assim.

A desestruturação da família está, também, no miolo do caos social. É no âmbito da família que se desenvolve o cidadão honrado. E é na sua ausência que cresce a sombra da futura delinquência. Não é difícil imaginar em que ambiente familiar terão crescido os integrantes de gangues que se divertem assaltando o Estado, roubando a sociedade e esbofeteando o sofrimento dos desabrigados. Um amigo psiquiatra, competente e talentoso, dizia-me, como já mencionei neste espaço opinativo, que algumas doenças psíquicas têm melhor prognóstico terapêutico nos países do Terceiro Mundo. "Aqui", afirmava, "ainda existem laços familiares." O Primeiro Mundo, rico e consumista, padece de subdesenvolvimento afetivo. A realidade, infelizmente, não confirma o otimismo do meu amigo. Estamos perdendo afetividade. Aceleradamente.

Mas sem uma profunda renovação moral da sociedade é arar no mar. As análises dos especialistas esgrimem inúmeros argumentos. Fala-se de tudo. Menos das raízes profundas da crise: o relativismo ético, a ausência de limites e a ruptura da família. Mas o nó esta aí. Se não tivermos a coragem e a firmeza de desatá-lo, assistiremos a uma espiral de comportamentos criminosos e antiéticos sem precedentes.

Carlos Alberto Di Franco, diretor do Master em Jornalismo (www.masteremjornalismo.org.br), professor de Ética e doutor em Comunicação pela Universidade de Navarra, é diretor da Di Franco - Consultoria em Estratégia de Mídia (www.consultoradifranco.com)
E-mail: difranco@iics.org.br

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