terça-feira, 10 de março de 2009

O orçamento em perigo

A crise econômica chegou ao Tesouro Nacional, derrubando a arrecadação de impostos e contribuições, mas o governo ainda não sabe como ajustar suas contas à nova realidade. Em janeiro e fevereiro, a receita ficou 12,2% abaixo do valor previsto no orçamento, segundo informações exclusivas divulgadas ontem no Estado. A perda resultou não só do corte do imposto sobre os automóveis, destinado a animar os consumidores a ir às compras, mas também da redução da atividade na indústria e no comércio. A produção industrial de janeiro foi 17,2% menor que a de um ano antes e só ultrapassou a de dezembro porque no fim do ano as fábricas de veículos estavam praticamente paradas. Técnicos federais estimam para o ano uma perda acumulada de receita de R$ 40 bilhões, se a economia reagir no segundo semestre. Na pior hipótese, o governo poderá recolher R$ 64 bilhões a menos que o programado.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ministro da Fazenda, Guido Mantega, reiteraram várias vezes, desde o começo do ano, a aposta num crescimento econômico próximo de 4% em 2009. No segundo semestre do ano passado a projeção oficial ainda era de 4,5%.

O orçamento aprovado no Congresso, no fim de 2008, saiu com uma estimativa de crescimento de 3,5%, menos otimista que a do Palácio do Planalto, mas ainda considerada excessiva por muitos analistas. Desde a sanção da lei orçamentária pelo presidente Lula os cálculos produzidos no mercado financeiro e nas consultorias econômicas foram revistos várias vezes, sempre para menos. Essas previsões são coletadas semanalmente pelo Banco Central (BC), por meio da pesquisa Focus. Se a previsão divulgada ontem estiver correta, o Produto Interno Bruto (PIB) crescerá neste ano apenas 1,2%. Há quatro semanas projetava-se uma expansão de 1,7%. E isso não é tudo. Os economistas de bancos e consultorias agora estimam para a produção industrial uma contração de 0,04% (mediana das projeções).

Em outras palavras, a principal fonte de dinamismo da economia brasileira terá um péssimo desempenho, segundo os cálculos correntes no mercado. Mesmo que o resultado final seja melhor que o previsto, 2009 será sem dúvida um ano excepcionalmente difícil e o governo não se preparou para isso.

O presidente e o ministro da Fazenda reafirmam quase todo dia a disposição de investir em obras para animar a economia. Também repetem a promessa de manter os gastos sociais. Mas não explicam como poderão fazê-lo num período de arrecadação muito magra. Mas o problema não decorre só da incerteza quanto à receita fiscal de 2009. O governo terá muita dificuldade para remanejar orçamento. Se tivesse condições de fazê-lo, poderia reforçar as despesas mais produtivas e com maior potencial de criação de empregos. Seu espaço de ação é no entanto muito limitado, porque o presidente da República repetiu, em 2008, as bem conhecidas imprudências de sua administração. Elevou os gastos com o funcionalismo e comprometeu-se com mais um grande aumento do salário mínimo, desta vez de 12%. O novo mínimo de R$ 465 imporá ao governo federal gastos adicionais de R$ 8,5 bilhões neste ano, principalmente pelo impacto nas contas da Previdência.

A receita do primeiro bimestre ficou cerca de R$ 11 bilhões abaixo do estimado para o período. Se a economia brasileira for tão mal quanto indicam as projeções da pesquisa Focus, o governo terá muita dificuldade para obter o superávit primário programado para o pagamento de juros. De fato, terá de reduzir muito esse resultado para evitar uma grave paralisia de suas atividades. Sua alternativa seria fazer um enorme esforço em busca de eficiência, adiando contratações, evitando a reposição de pessoal e remanejando o máximo possível de despesas. Isso exigiria uma competência administrativa e uma disposição política nunca demonstradas pelo governo do PT.

Com a crise, aumentam as pressões para uma rápida redução de juros. Isso permitiria, argumenta-se, uma grande economia nos gastos com a dívida pública. Mas a função básica da política monetária é evitar a inflação. Se a condição dos preços for considerada segura, o Comitê de Política Monetária poderá cortar os juros mais velozmente, para facilitar a reativação dos negócios e deter o desemprego. Mas não é seu papel socorrer o Tesouro Nacional comprometido pela imprudência de um Executivo gastador.

ESTADÃO

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domingo, 8 de março de 2009

O chorume institucional

"Mesmo as leis mais bem ordenadas são impotentes diante dos costumes." O velho Maquiavel sempre mata a charada. Só faltou dizer que, num longínquo futuro, o axioma flagraria a imagem sem retoques de um país chamado Brasil. Pois aqui as leis se dobram às linhas sinuosas do tempo, adaptam-se às interpretações personalistas, perdem o sentido da perenidade. O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Gilmar Mendes, denuncia a ilegalidade do repasse de dinheiro público a movimentos que invadem terras e praticam assassinatos. O que acontece? Ganha do MST, em resposta, a pecha de juiz que "solta banqueiros corruptos". Atente, leitor, para a gravidade: a maior autoridade do Poder Judiciário, ao pregar o império da lei e da ordem, é tratado como criminoso. Por que esse movimento não é levado à barra dos tribunais? Porque o jeitinho brasileiro - os tais costumes - o esconde. Como não tem CNPJ, recebe dinheiro de associações e cooperativas para agir na ilegalidade. E os quatro assassinatos de seguranças de fazendas em Pernambuco, que ele, MST, assumiu? Ah, isso faz parte de uma "maneira mais arrojada" de atuar, segundo o ministro da Justiça. Parece mais um elogio.

Afinal, por que uma denúncia de sérias proporções, feita pelo presidente do STF, vai direto para o esgoto? A gramática política do Ocidente responde: a accountability, que é o conceito apropriado, está capenga, ou seja, as autoridades que se obrigam a prestar contas de seus atos não o fazem. A responsabilização é apenas um enfeite na prateleira institucional. Autoridades não se sentem obrigadas a dar visibilidade a seus atos. Desleixos, quebras da ordem, ditos que se perdem no esquecimento, cobranças sem resultados e respostas enviesadas constituem a argamassa para a decomposição do Estado democrático. O procurador-geral Antonio Fernando de Souza reage ao presidente do Supremo e diz que o Ministério Público apura o desvio de verbas há tempos. Gilmar responde cobrando rapidez. A imagem que se extrai é a do chorume, aquela substância líquida que resulta do processo de putrefação de matérias orgânicas e se encontra nos lixões e aterros sanitários. Há uma pasta apodrecida, em decantação, que se esparrama pelos lixos de nossas instituições. A lerdeza nas apurações é fonte da massa em deterioração.

A degradação de elementos é tão visível que já não provoca comoção. Os pacotes de reformas (política e tributária) vão para os porões do chorume. Não dá mais para acreditar neles. Fala-se, agora, em projeto de reforma política oriundo do Executivo. Anotem a contrafação. A chamada mãe de todas as reformas virá do paizão com nome de Executivo. Dá para acreditar, sabendo que o nosso presidencialismo, de cunho absolutista, jamais se desgarrará dos nacos de poder que abastecem seu pantagruélico estômago? As famigeradas medidas provisórias, tão combatidas por todos e irremovíveis como nunca, seguem o mesmo rumo: os ralos do chorume.

O controle democrático, vale lembrar, tem duas dimensões: uma horizontal, outra vertical. A primeira diz respeito às relações entre instituições e abrange os chamados freios e contrapesos entre os Poderes. Tais freios estão enferrujados e carecem de bom reparo. Muita ferrugem acaba se transformando em monturo. A dimensão horizontal abarca, ainda, políticas voltadas para o equilíbrio federativo, aí incluindo ações, programas e recursos destinados a municípios, Estados e União. Também nessa vertente a ferrugem come pelas bordas, tornando mais distante a ideia de uma reforma tributária que satisfaça os entes federativos. Como ninguém quer perder, principalmente a União, com sua bocarra, reformar tributos não passa de ruído aos ouvidos dos crentes. Já a dimensão vertical leva em conta relações entre governantes e governados, representantes e representados. Nessa faixa o vácuo é ainda maior. A promessa de abertura de fluxos de participação entre eleitos e eleitores não passa de miragem. Os governos são castelos com tesouros escondidos. Se houvesse disposição para abrir caixas-pretas, a sociedade brasileira, perplexa, prostrar-se-ia diante de um monumental PIB, sob o qual estariam escondidas obras irrelevantes, doações fantasmas, licitações superfaturadas e outras falcatruas.

Na arena da violência, a banalização campeia. De tão comuns, os assaltos se repetem, inclusive pegando as mesmas vítimas. O músico Marcelo Yuka, ex-baterista do Rappa, paraplégico depois de ter sido baleado em tentativa de assalto, em 2000, não comoveu novos assaltantes, na semana passada. Entrou na série da banalização. A área da saúde está erodida. Há quem veja nela, como o deputado Ciro Gomes, um "genocídio diário". Médicos em greve, no Rio Grande do Norte, esticam a fila dos doentes e apressam o fim dos que se agarram à vida por um fio. Nem trombetas de TV conseguem motivar as autoridades a sair do estado catatônico. O que sai da sua boca é a promessa - sempre a promessa - de contratação de novos profissionais. Nos intervalos comerciais, o ministro da Educação anuncia, em rede nacional, a Universidade Aberta do Brasil, a aprovação do piso nacional do magistério e a meta de atingir a nota 6 em índice de avaliação. Espremendo-se o verbo, sobra um SOS para o sistema educacional. O Tribunal Superior Eleitoral cassa governadores. Mas nossa legislação eleitoral - com seus incisos, parágrafos e uma montanha de resoluções - propicia, segundo especialistas, cerca de 15 mil pontos de discórdia e de interpretação.

Se formos diligentes neste passeio pelos caminhos institucionais, chegaremos à conclusão de que poucos são imunes à produção de chorume. A contaminação é geral. A separação entre a res publica e a sociedade revela monumental crise de legitimidade do Estado democrático. Eis a pergunta que cabe, ao fim e ao cabo: o que fazer? Para começar, obedecer à lei, respeitar a ordem, impor a disciplina, exigir de cada um o seu dever. Sem o que os direitos, logo, logo cairão nos lixões que devastam a paisagem.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político
ESTADÃO

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POLÍTICA DE PRIVACIDADE

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