segunda-feira, 14 de novembro de 2005

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OGLOBO:

A traição dos intelectuais

DENIS LERRER ROSENFIELD

Há uma certa classe de intelectuais que se comprazem na negação da verdade, na recusa dos fatos e na renúncia do juízo moral. Já em 1927, Julien Benda, num texto célebre, “A traição dos clérigos”, cunhou uma expressão que teve vida longa, embora pareça não ter atravessado adequadamente o Atlântico Sul. O tempo das idéias não corresponde ao tempo histórico, embora intelectuais devessem, por ofício, estar a par do que acontece no mundo. Com essa formulação, Benda designava aquele tipo de pessoa, tendo como ofício a palavra e o discurso, que se colocava a serviço de uma causa, numa espécie de servidão voluntária que caracterizou boa parte da intelectualidade ocidental no transcurso do século XX. O serviço à verdade desaparecia do horizonte, pois o que contava era “a causa” ser ou não devidamente defendida.

Os que se dedicam à verdade e ao exercício do juízo moral são os que não tergiversam sobre os fatos, seguindo-os atentamente e, se for o caso, dispõem-se a revisar as suas posições. Seu alvo reside em discursos, regras e ações que tenham uma validade universal e não sejam instrumentos de causas particulares, tornadas, pela fé política, absolutas. Por exemplo, se intelectuais defendiam a “ética na política” como um princípio devendo reger a vida pública, é porque esse princípio era tomado em sua universalidade, independentemente das pessoas ou dos partidos aos quais ele se aplicava. Quando, no entanto, o “mutismo” toma o lugar da “loquacidade” de outrora nos assuntos de moralidade pública, é porque houve aquilo que Benda chamava de “traição”: o abandono dos princípios morais em nome de uma causa que se traveste, então, de religiosa.

A função intelectual deveria estar voltada para a crítica de regras, costumes, máximas e proposições que não se adequariam às condições de verdade das proposições e dos princípios morais, não se subordinando a interesses específicos, apesar de esses poderem ser ditos, erroneamente, universais. O problema consiste em que o século XX, nas experiências das esquerdas autoritárias ou totalitárias, nas experiências do “socialismo real”, mostrou um tipo de intelectual a serviço de uma “causa temporal”, como se essa devesse ser justificada independentemente de seus resultados e meios de realização.

Todos os eventos de derrocada moral e política do governo Lula e do PT têm sua origem neles mesmos e em sua base aliada. Graças às denúncias de Roberto Jefferson, todo um “novo mundo” emergiu, mostrando personagens relativamente desconhecidos como Delúbio Soares, Silvinho Pereira e Marcos Valério. Ministros foram substituídos ou caíram numa tentativa frenética de o governo contornar os efeitos da crise produzida. A cúpula do PT teve de renunciar. A captura partidária do aparelho de Estado ficou ainda mais escancarada com a corrupção que salta cada vez mais aos olhos. Nem o BB, por intermédio do Visanet, parece escapar desse assalto aos cofres públicos. O que dizem os “clérigos”: “trata-se de uma invenção da mídia!”; “nada foi provado!”. Só falta dizer: “Somos puros.”

Até um novo vocabulário foi inventado para encobrir o que está acontecendo e os propósitos dos que assim agiram. O de maior efeito é provavelmente o que procura mascarar a corrupção com a expressão “recursos não-contabilizados”. Delúbio Soares deveria, inclusive, ganhar o prêmio da Academia Brasileira das Falsas Letras por esta pérola: “Não há contabilidade de recursos não-contabilizados.” Traduzindo prosaicamente: “Não prestarei contas do dinheiro da corrupção!” Ora, até mafiosos têm contabilidade do que ganham ou extorquem ilegalmente. Onde está essa “contabilidade”? Perdida nos meandros de palavras e discursos que procuram velar uma prática autoritária de poder.

Contudo, os que tiveram o senso crítico de não aceitar um tal uso “imoral” dos discursos, criticando internamente o PT ou o abandonando para ingressar em outras agremiações partidárias, como o PSOL, só parcialmente fizeram um serviço ao esclarecimento da verdade. O seu movimento consistiu na passagem de “uma causa” à “outra”, como se o problema não fosse, precisamente, o de estar a serviço de uma causa, tendo como conseqüência o desrespeito à democracia representativa, ao estado de direito ou, mesmo, à inteligência das pessoas.
DENIS LERRER ROSENFIELD é professor de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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