quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Ignorando o aparelhamento

O ministro Roberto Mangabeira Unger aprendeu uma coisa ou duas com o fato de ter sido convidado a fazer parte do mesmo governo que qualificara como o mais corrupto da história brasileira. Ele aprendeu, por exemplo, a não se preocupar com os efeitos de suas palavras sobre os fatos. Aprendeu também a não se preocupar com a desconexão entre as suas ideias e a realidade a que supostamente deveriam dizer respeito. "Livre-pensar é só pensar", como diria o humorista Millôr Fernandes. Acrescente-se a isso uma insopitável tendência a inflacionar a importância de sua pessoa e de suas elucubrações, a ponto de se apresentar urbi et orbi como "professor de Obama", dando a entender que desempenhou um papel decisivo na formação do novo presidente dos Estados Unidos quando de sua passagem pela Universidade Harvard.

Nessa condição, deu há pouco uma entrevista ao jornal espanhol El País, na qual simplesmente prega a superação tanto da "esquerda vendida, que aceita o mercado e a globalização e quer simplesmente humanizá-los por meio de políticas sociais", como da "recalcitrante, que quer desacelerar o progresso do mercado e da globalização" - uma rombuda simplificação dos debates ideológicos da atualidade. "A esquerda que me interessa", completou, "quer reconstruir o mercado e reorientar a globalização com um conjunto de inovações institucionais", seja lá o que isso queira dizer. Descendo do olimpo intelectual para onde frequentemente o propele a sua egolatria desprovida de desconfiômetro, o professor veio anteontem a São Paulo para uma reunião com empresários interessados em discutir melhoras na gestão pública.

Sua foi a proposta de virtual extinção dos cargos comissionados (de confiança) na estrutura administrativa estatal e a sua substituição por carreiras de Estado. Tomados pelo seu valor de face, os seus argumentos são surpreendentemente lúcidos. "Nunca completamos a obra do século 19 em matéria de administração pública, que é a construção de uma burocracia profissional baseada no mérito", avaliou, segundo notícia da Folha de S.Paulo. "Continuamos numa situação em que há ilhas de profissionalismo burocrático que flutuam num oceano de discricionarismo político. Precisamos acabar com isso." O problema, porém, não é tão simples quanto parece pretender o ministro.

Em primeiro lugar, embora desejável para descontaminar o Estado das conveniências dos governos de turno, a implantação da meritocracia no funcionalismo público e a formação de elites burocráticas em todos os níveis da Federação não dispensam uma certa proporção de servidores comissionados. Estes são indispensáveis à atividade governamental em regimes que se renovam periodicamente - e podem sair mais em conta para as finanças públicas do que a outra alternativa, sobretudo porque, quando concursados, invocando o sacrossanto princípio da isonomia, conseguem arrancar dos governos privilégios de que continuarão a usufruir mesmo na aposentadoria. Cargos em comissão, de resto, existem em outros países em aparelhos estatais consolidados e robustos, como o dos Estados Unidos. A questão, naturalmente, é de escala: a cada mudança efetiva de governo menos de 3 mil mesas mudam de dono em Washington.

O que remete à questão da sinceridade do ministro: acredita ele na possibilidade de o governo Lula levar a sério sua proposta? Ao apresentá-la, Unger critica o "oceano de discricionarismo político" na ocupação histórica da máquina pública, enquanto serve diligentemente - ou assim deve imaginar - o governo que alargou e aprofundou esse mesmo oceano em proporções sem precedentes. Só que o termo que descreve com precisão esse retrocesso é outro - a institucionalização do aparelhamento. A era Lula, como se supõe que o professor não ignore, abriu espaço no Executivo a uma verdadeira "nova classe" de milhares de "operadores do Estado" - existem hoje cerca de 30 mil funcionários em cargos de confiança - vindos do sindicalismo e de áreas de atuação governamental em que o PT deitou raízes. Deles se pode dizer que só servirão ao interesse coletivo se e quando este coincidir com o interesse partidário e, por extensão, do chefe maior da companheirada. Disso o ministro não fala - nem com as suas construções estrambóticas.

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