quarta-feira, 9 de novembro de 2005

Microfone para entrevista? Não!

Merval Pereira em OGLOBO:

Fatos e versões

O presidente Lula tem toda razão de não conceder entrevistas coletivas, especialmente as que, como a do “Roda Viva” da TV Cultura, permitem o contraditório. A última entrevista que concedera no Palácio do Planalto teve como regra a proibição de réplicas, o que o deixou muito à vontade, quase que falando sozinho. Na segunda-feira, o ambiente estava muito cerimonioso, os jornalistas ficaram afastados do presidente, com uma separação psicológica e até mesmo física, com um tapete que dividia seu ambiente do dos entrevistadores.

Mas quando esses replicavam suas respostas, ficava claro que elas não correspondiam inteiramente à realidade. Como na letra de Cazuza, suas idéias não correspondem aos fatos. Como quando tentou negar que dinheiro do caixa dois tenha sido usado em sua campanha presidencial, e foi confrontado por Heródoto Barbeiro com o fato de que seus próprios aliados, como o presidente do PL Valdemar Costa Neto, haviam confessado. Lula foi ao ponto de perguntar a Heródoto “por que você acredita nele e não em mim?”, numa demonstração clara de que não tinha mais argumentos. Ou quando chegou a fazer um apelo a Augusto Nunes para que parasse de citar frases suas para confrontá-las com suas atitudes.

O presidente só foi poupado deliberadamente em poucos momentos da entrevista: quando Rodolfo Konder deixava de lado a crise política para filosofar sobre os caminhos da História, ou quando Matinas Suzuki introduziu o futebol na discussão, dando chance ao corintiano Lula de respirar um pouco. Houve momentos em que respostas vagas ou imprecisas do presidente Lula passaram sem contestação, como quando negou que tivesse declarado que daria um cheque em branco ao seu então aliado Roberto Jefferson.

De fato, nunca se ouviu da boca do presidente tal frase, mas Jefferson fez a declaração depois de um encontro com o presidente e demais líderes da base aliada, e o Palácio do Planalto não o desautorizou. Quando, no início do programa, Lula admitiu que o presidente é sempre responsável pelo que acontece no governo, mesmo que não saiba de nada, para em seguida dizer que o que cabe ao presidente “é mandar apurar” as denúncias, não foi contestado. Ora, na política ou em uma empresa, ser responsável pelos atos praticados por seus subordinados implica assumir as conseqüências desses atos, e poder ser punido por eles.

O presidente Lula se coloca o tempo todo à parte dos acontecimentos, e chega a duvidar de fatos que já foram confessados por seus aliados. Assim, caixa dois em sua campanha cheira a “fantasia”; mensalão na Câmara é “folclore”. Traiu-se em determinado momento ao se referir ao ex-tesoureiro do PT como “nosso Delúbio”, a indicar o que todos já sabem: que Lula era o verdadeiro suporte de Delúbio dentro do PT. Mesmo assim, atribuiu a Delúbio todos os malfeitos petistas, assim como, parecendo estar defendendo José Dirceu, deu-lhe o tiro de misericórdia ao fazer uma análise política que culminou com a constatação — correta, aliás — de que a Câmara está “condenada” a cassá-lo.

Se Lula está convencido de que não há qualquer prova contra Dirceu, por que o tirou do Palácio do Planalto em cima das acusações de Roberto Jefferson? E se de fato acha que sua cassação será exclusivamente por questões políticas, por que não orienta sua base aliada a defendê-lo na Comissão de Ética, onde foi derrotado quase por unanimidade?

Se ontem Lula tivesse se declarado esperançoso na absolvição de Dirceu, teria pelo menos dificultado a posição de deputados de sua base. Mas, aceitando como certa sua cassação e, mais que isso, compreendendo que essa decisão é a única resposta que os deputados podem dar à sociedade, Lula deu o sinal verde para a cassação de Dirceu. Ou o “beijo da morte”, como definiram líderes oposicionistas.

Ontem, a senadora Heloísa Helena disse no plenário do Senado que o presidente Lula “tem mel na boca e bílis no coração”, e que é capaz de dar um abraço, ao mesmo tempo em que apunhala pelas costas. Dirceu, Delúbio e Heloísa Helena conhecem Lula há muito tempo, saberão interpretar suas palavras melhor do que ninguém. A entrevista do “Roda Viva” deu ainda um roteiro do que será a campanha de reeleição, embora Lula tenha insistido em que não se decidiu se concorrerá. E Gilberto Carvalho, seu chefe de gabinete, tem razão quando disse que a campanha da reeleição será “dolorosa”.

O presidente mostrou que não tem condições de enfrentar debates sobre questões delicadas como o contrato de seu filho com a Telemar ou a compra do AeroLula, dois casos que o tiraram do sério durante a entrevista. Se estiver bem colocado nas pesquisas, Lula poderá até evitar os debates. Mas não escapará dos programas de seus adversários, que colocarão no ar declarações e noticiário que desmentem suas versões.

Quando garantir que quer apurar tudo nas CPIs, bastará que mostrem as manobras dos petistas para tentar impedir a criação das CPIs — a dos Bingos fora engavetada e só saiu por decisão do Supremo — e depois, a tentativa dos petistas de desqualificar as testemunhas contrárias ao governo e as manobras para evitar convocações desagradáveis.

Na entrevista do “Roda Viva”, sempre que acuado pelos fatos, o presidente Lula alegava que as investigações ainda estão em curso, e o relatório final das CPIs ainda não saiu. E indo mais além na tentativa de ganhar tempo contra as denúncias, lembrava que o Ministério Público ainda tem que aceitar as denúncias, e o Supremo Tribunal Federal terá que julgá-las. Na campanha eleitoral, provavelmente algumas dessas etapas estarão concluídas, reduzindo a margem de manobra do presidente. Mas, por esse raciocínio, ele acabará chancelando a tese de que o Supremo Tribunal Federal absolveu o presidente cassado Fernando Collor.

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