sábado, 1 de novembro de 2008

Classe média que ainda não é

Não consegui deglutir essa euforia acrítica de classe média majoritária. Outro dia, contou-me um amigo que alguém lhe perguntara: "Como faço para entrar na classe média, se ganho R$ 980?" Respondeu-lhe esse amigo: "É muito fácil, peça ao seu patrão um aumento na Carteira de Trabalho de R$ 84 e, mesmo que não os receba, você passará a ser mais um feliz integrante dessa classe, o que certamente mudará a sua vida."

Não se brinca assim, por atacado, com o povo de um país. Um mínimo de análise é necessário, por isso pergunto: R$ 1.064 são suficientes para prover uma família, mesmo com apenas dois filhos, e manter uma casa com oferta de boa alimentação? E os gastos com transporte, telefone, água, luz, cultura, lazer? É só pela renda familiar que se define a classe média? É tão simples assim? Quem estabeleceu esses limites respondeu às perguntas anteriores?

Será que esses cidadãos exultantes por passarem a viver num país de classe média e a ela pertencerem conhecem os péssimos - e mantidos - resultados da avaliação do ensino público fundamental (Prova Brasil, Saeb, Pisa, etc.), em que os seus filhos certamente estudam, e os últimos resultados do Enade, que mostram 30% dos cursos superiores reprovados?

É verdade que esse cidadão não tem muita preocupação com a qualidade do ensino superior, pois seus filhos não estão e, possivelmente, não estarão na universidade, que é excludente para a grande maioria dos jovens dessa "nova classe média", que vêm do ensino público fundamental. Segundo pesquisas da Unicamp, a partir do quinto ano do ciclo fundamental esses jovens vão desaparecendo silenciosamente das salas de aula e das estatísticas. Os poucos que terminam o ensino médio não conseguem entrar nas boas universidades públicas e, tampouco, pagar as privadas. Apenas 11% dos jovens brasileiros entre 18 e 25 anos cursam o ensino superior e não são os que estão, estatística e virtualmente, entrando na classe média. Espanha e Coréia do Sul, para citar apenas dois exemplos, têm mais de 60%. Recentemente, estudos da Rede de Informação Tecnológica Latino-Americana mostraram que, no Brasil, 53% das famílias mais ricas têm seus filhos nas universidades, enquanto apenas 0,8% das mais pobres os têm no ensino superior. Essa é a classe média que inventaram.

De saúde nem é bom falar. Os índices de descontentamento e os de mortalidade falam por si e as famílias que ganham de R$ 1.064 a R$ 4.591 ficam num verdadeiro dilema: Sistema Único de Saúde (SUS) com falta de acesso, mau acolhimento, burocracias e filas ou planos de saúde ilusórios. Aliás, qualquer escolha é dramática e eu não saberia dizer qual é a pior.

Ou seja, certos órgãos governamentais inventam uma classe média e acabam com a pobreza colocando-a lá dentro, quando a obrigação não cumprida do governo é a de implantar sistemas de educação, saúde e outros que ofereçam a todos a oportunidade de se habilitarem a uma verdadeira classe média, com cidadãos preparados para as tarefas de tecnologia avançada, com potencial produtivo e de participação política estabilizadora do sistema - ambas regadas e balizadas por um humanismo decorrente do acesso aos bens culturais -, não a criada artificialmente por estatística. Aliás, isso me lembra Benjamin Disraeli, primeiro-ministro do Reino Unido no século 19, que certa feita disse que existem três tipos de mentira: a mentira, a mentira deslavada e a estatística.

Não quero desclassificar os dados da FGV e do Ipea nem minimizar os acréscimos de rendimento que os brasileiros pobres tiveram nestes últimos anos pelo aumento justo do salário mínimo, Bolsa-Família, valorização da moeda e crescimento do emprego, mas dizer que somos um país de classe média é um escárnio, uma montagem, propaganda enganosa.

Vale a pena aguçar a consciência política e rever o excelente filme A Classe Operária Vai ao Paraíso (1971), de Elio Petri, com Gian Maria Volonté.

Se nos conformarmos com uma classe média definida apenas por maior potencial de compra, estimulando o vício do consumismo e atendendo ao apetite insaciável do capitalismo pelas aquisições inúteis daqueles que são denominados "rica massa pobre", tudo adaptado a um sistema financeiro que se esgotou, nunca teremos um País desenvolvido no correto sentido da palavra. Só a construção de uma verdadeira classe média, com políticas públicas corretas, poderá trazer-nos, nesta fase histórica, uma certa garantia de riqueza e desenvolvimento que não sejam os da sorte de termos encontrado petróleo (nem sei se perfuraremos o pré-sal, pelo preço atual do produto) e sido bafejados temporariamente pelo aumento do preço das commodities - mas os produzidos por uma massa crítica de pessoas que possam absorver ciência e tecnologia com capacidade de inovar, manufaturando produtos de valor agregado e competitivos em nível internacional.

Além do mais, somente um povo educado pode garantir distribuição de riqueza e o fim da violência, dois grandes flagelos da realidade brasileira. Mas esperar isso da classe política, dominada na maioria pelos rentistas e pelo poder econômico, mesmo que hoje em crise, é acreditar em contos da carochinha iguais a esse de um país de classe média, que é a mentira da vez, enfiada goela abaixo de um povo despolitizado - possivelmente de forma intencional -, por falta de educação.

José Aristodemo Pinotti, deputado federal (DEM-SP), professor emérito da USP e da Unicamp, membro da Academia Nacional de Medicina (cadeira 22), foi secretário de Educação (1986-1987) e da Saúde (1987-1991) do Estado e do Município de São Paulo, presidente da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (1986-1992) e reitor da Unicamp (1982-1986)

Estadão

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