segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

O silogismo da impunidade

O roubo de donativos destinados às vítimas das enchentes em Santa Catarina provocou indignação e também uma discussão sobre os reflexos da impunidade no País. O professor de Ética e Filosofia da Unicamp Roberto Romano disse, em comentário publicado no jornal O Globo, que o comportamento de juízes, políticos e empresários que advogam em causa própria incentiva ações como as dos soldados e voluntários que roubaram alimentos e roupas doados àqueles que perderam tudo o que tinham nas enchentes.

"A gente fica horrorizado. Quando se vê um político dividindo sacos de dinheiro, de forma tranquila, começa-se a achar natural um voluntário separar daquele conjunto o que é melhor para ele. É necessário dar um basta a isso. Quando vamos romper esse ciclo? Quando se banaliza a corrupção se banaliza a culpa. O risco é de que se torne um comportamento epidêmico. Para onde vamos?", pergunta o historiador Marco Antônio Villa. A presidente da Pastoral da Criança, Zilda Arns, disse ter ficado envergonhada com o que aconteceu em Santa Catarina. Para ela, quem rouba donativo não tem firmeza de caráter.

Uma das causas dos crimes e dos desvios de comportamento que castigam a sociedade brasileira é, sem dúvida, a certeza da impunidade. O criminoso sabe que a probabilidade de um longo período de reclusão só existe na letra morta da lei. O Brasil, como bem sabemos, não padece de anemia legal. O nosso drama é a falta de eficácia na aplicação da lei. A Itália, nação também latina e emocional, soube combater suas máfias com notável sucesso. E não falemos nos países anglo-saxões. Lá fora também existe corrupção, só que as autoridades colocam os ladrões na cadeia.

O que a sociedade assiste, em todos os níveis, a começar pelos patamares mais altos, é ao jogo do faz-de-conta e ao triunfo da mais obscena impunidade. O teatro das CPIs, a reeleição de inúmeros corruptos, a novela inacabada dos escândalos que se sucedem e tantas outras bofetadas na cidadania compõem o ambiente perfeito para a institucionalização do crime. A fibra moral da sociedade vai-se desfazendo numa velocidade assustadora. Mas há, estou convencido, causas ideológicas mais profundas para o eclipse da ética e para a explosão das ações criminosas. O relativismo ético, a ausência de limites e a crise da família estão na raiz da patologia social.

De fato, quantas correntes ideológicas, quantos modismos intelectuais vivemos nas últimas décadas? A busca da verdade é frequentemente etiquetada como fundamentalismo, ao passo que o relativismo, isto é, o deixar-se levar ao sabor da última novidade, aparece como a única atitude à altura dos tempos que correm. Vai-se constituindo a intolerância do relativismo que não reconhece nada como definitivo e que usa como critério apenas o próprio eu. Porém, como lembra o papa Bento XVI, do alto de sua inequívoca autoridade intelectual, "a renúncia à verdade não soluciona nada, mas ao contrário: conduz à ditadura da arbitrariedade". O relativismo está, de fato, na origem do enfraquecimento da democracia e nas agressões cada vez mais brutais aos direitos humanos.

Há no cerne da crise uma profunda raiz ideológica. Na verdade, as bases racionais da modernidade foram minadas pelo relativismo. Rompeu-se, dramaticamente, o nexo de união entre vontade e razão. Dessa forma, as pessoas passaram, no seu comportamento prático, a confundir gosto com vontade, sem conseguir captar as profundas diferenças existentes entre ambos. Por isso, cada vez mais o gosto, o capricho, o prazer (incluindo as suas manifestações mórbidas e doentias) passaram a impor sua força cega. Um dos traços comportamentais que marcam a decomposição ética da sociedade é, efetivamente, o desaparecimento da noção da existência de relação entre causa e efeito. A responsabilidade, consequência direta e lógica dos atos humanos, simplesmente desapareceu. O fim justifica os meios. Sempre. Trata-se da consequência lógica do raciocínio construído de costas para a verdade e para a ética. O político não tem limites na busca do poder. O burocrata avança no dinheiro público. E o voluntário saqueia os mantimentos e furta os donativos destinados a minorar o drama de nossos compatriotas. É terrível, mas é assim.

A desestruturação da família está, também, no miolo do caos social. É no âmbito da família que se desenvolve o cidadão honrado. E é na sua ausência que cresce a sombra da futura delinquência. Não é difícil imaginar em que ambiente familiar terão crescido os integrantes de gangues que se divertem assaltando o Estado, roubando a sociedade e esbofeteando o sofrimento dos desabrigados. Um amigo psiquiatra, competente e talentoso, dizia-me, como já mencionei neste espaço opinativo, que algumas doenças psíquicas têm melhor prognóstico terapêutico nos países do Terceiro Mundo. "Aqui", afirmava, "ainda existem laços familiares." O Primeiro Mundo, rico e consumista, padece de subdesenvolvimento afetivo. A realidade, infelizmente, não confirma o otimismo do meu amigo. Estamos perdendo afetividade. Aceleradamente.

Mas sem uma profunda renovação moral da sociedade é arar no mar. As análises dos especialistas esgrimem inúmeros argumentos. Fala-se de tudo. Menos das raízes profundas da crise: o relativismo ético, a ausência de limites e a ruptura da família. Mas o nó esta aí. Se não tivermos a coragem e a firmeza de desatá-lo, assistiremos a uma espiral de comportamentos criminosos e antiéticos sem precedentes.

Carlos Alberto Di Franco, diretor do Master em Jornalismo (www.masteremjornalismo.org.br), professor de Ética e doutor em Comunicação pela Universidade de Navarra, é diretor da Di Franco - Consultoria em Estratégia de Mídia (www.consultoradifranco.com)
E-mail: difranco@iics.org.br

ESTADÃO

0 comentários:

POLÍTICA DE PRIVACIDADE

  ©Template by Dicas Blogger.

TOPO