sábado, 22 de outubro de 2005

Contribuintes e eleitores?

Opinião em JBOnline:

Afinal, o que somos?


Alfredo Ruy Barbosa

Advogado e cronista

Duas senhoras irlandesas, que estavam sentadas ao meu lado na sala de espera do aeroporto, perguntaram-me o que eu achava da reação dos brasileiros diante dessa crise: ''Vocês são pacientes ou indiferentes?'' Tentando defender nosso povo, disse que não somos nem uma coisa nem outra, mas tive de reconhecer que não estamos devidamente organizados para enfrentar problemas dessa natureza. Uma das senhoras disse, então, que residia no Brasil há mais de 20 anos e que, embora adorasse o país, não se conformava com a nossa passividade diante do atual governo. ''Os irlandeses têm sangue quente e, a essa altura, já estaríamos nas ruas, organizados ou não'', acrescentou ela. Insisti na defesa até embarcarmos no avião, mas, durante a viagem, fiquei refletindo sobre os comentários das duas senhoras. Acabei admitindo a idéia de que, para qualquer governo, somos apenas duas ''coisas'': contribuintes e eleitores. Os impostos absurdos que pagamos servem, na realidade, para financiar os interesses mesquinhos dos donos do poder. E, como eleitores, somos chamados, a cada quatro anos, apenas para apertar um botãozinho e deixar tudo como está. Meu sangue esquentou ainda mais quando me lembrei das recentes sandices proferidas pelo presidente Lula. Só falta agora ele repetir, numa suíte luxuosa em Paris, a famosa frase de Maria Antonieta: ''Se os pobres não têm pão, por que não comem croissant?''

Não tendo mais o encargo da nossa defesa, passei a concordar plenamente com aquelas senhoras. Lembrei-me, então, do ensinamento de Cícero - ad astra per aspera (aos astros por caminhos ásperos) - e de um antigo provérbio latino - ad augusta per angusta (às coisas augustas por caminhos angustiantes). Infelizmente, esse é trajeto que o Brasil deverá percorrer para alcançar os astros da paz, da igualdade e da justiça social. O primeiro passo é impedir que se torne realidade a declaração feita por Delúbio de que o tempo transformará essa crise numa piada de salão. Afinal, o que a grande maioria dos brasileiros deseja para o país são ''as coisas augustas'', mesmo que seja por caminhos ásperos e angustiantes.

Em certos momentos históricos, até os povos mais pacíficos chegam a um ponto de total intolerância com a impunidade diante dos crimes contra o patrimônio público e com o descaso do governo pelos problemas sociais. O fato é que, no discurso político, certos termos têm dois significados. Veja-se, por exemplo, o termo democracia. No sentido comum, uma sociedade democrática é aquela em que o povo participa da discussão dos grandes temas nacionais. Mas, no sentido político, democracia é o sistema no qual as decisões são, na realidade, adotadas pelo setor empresarial e pelos segmentos mais ricos do país. O povo não passa de um mero expectador desse processo, sendo-lhe permitido apenas ratificar a decisão dos donos do poder sem interferir em assuntos que, teoricamente, não lhe dizem respeito.

Veja-se, ainda, o repugnante voto secreto que ''suas excelências'' inseriram no regimento interno do Congresso para a votação de matérias de seu próprio interesse. Com esse sistema, que prefiro chamar de ''voto dejeto'', como é possível avaliar a atuação e a coerência dos nossos pseudo-representantes?

De fato, nosso povo precisar sair da sua atual apatia e entrar na arena pública. Se, algum dia, eu reencontrar aquelas duas irlandesas, espero poder dizer a elas, com muito orgulho: ''Viram? Não somos pacientes nem indiferentes. Também temos sangue quente''.

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